Estava morta na mata

[ Constata-se aqui que «o nosso demi-monde constitui sublime matéria romanesca».
Há quem coleccione recortes de fait-divers, precisamente porque a realidade é permanente fonte de espanto e, logo, de romance.
Há uns dias, guardei uma página do Correio da Manhã com uma história dessas.
Publico-a tal e qual, com a devida vénia, até porque, na sua aparente simplicidade, esta é uma história verdadeiramente bem contada. ]

Sintra: Cão encontra cadáver na mata de Rio de Mouro
Estava morta na mata

Morta à pancada, Isabel Rute foi encontrada, anteontem, por um cão que um popular passeava na mata de Rio de Mouro, no concelho de Sintra. Com 36 anos, a mulher vivia há oito com Vitorino, um homem “nascido a 11 de Março de 1969” que habita uma barraca, construída por si na referida mata.
O corpo da mulher foi encontrado a dezenas de metros da barraca. E segundo fonte policial já estaria cadáver há alguns dias.“A Rute estava coberta por uns ramos e já tinha lagartas”, especificou ao CM Vitorino, adiantando que junto do corpo estava uma tábua que ele reconheceu: “Era da barraca do João, o ‘Barbas’”.
João é um homem que conhecia Rute e acolheu-a quando ela fugiu de casa, há cerca de duas semanas. Fugiu dos maus tratos que sofria de Vitorino. “Eu batia-lhe. E fui eu que lhe disse para se ir embora, para eu não lhe bater mais”, afirma.
Vitorino alega que ela lhe roubava coisas e que “apesar da porrada” gostava “muito dela”.“Eu adoro-a. Às vezes batia-lhe mas arrependia-me. Agora matá-la... Não era capaz disso.”
Vitorino coxeia, deficiência que ganhou num acidente de viação e que lhe dá a alcunha de ‘o coxo’.
Reformado devido à deficiência, recorre frequentemente à Santa Casa da Misericórdia. “Vou a Santa Apolónia comer e foi lá que conheci a Rute.”
Vitorino conheceu-a há oito anos, dormia ela na rua. “Era uma sem-abrigo”, diz, contando que Rute foi parar à rua depois de abandonar o marido, Jorge, que também a maltratava, e a filha de ambos, que hoje é uma mulher casada.
Vitorino lembra-se de, na altura, há oito anos, lhe ter perguntado: “A sr.ª Rute quer um tecto?”
Segundo fonte policial, Rute apresentou várias queixas de maus tratos contra Vitorino.
“Mas ela voltava sempre para ele porque tinha medo dele”, afirma ao CM um amigo da vítima, solicitando o anonimato.
O corpo de Rute – uma mulher magra, de estatura mediana e aparência frágil – tem marcas de pancada e de agressões com um objecto. Encontrado anteontem, foi transportado para o Instituto de Medicina Legal para ser autopsiado.
A investigação está a cargo da Polícia Judiciária, que ontem esteve toda a manhã na zona onde foi encontrado o cadáver a reconhecer indícios que possam esclarecer o homicídio.

"OS MEUS PAIS? NÃO CONHEÇO"

“A minha idade? Não sei. Não me lembro. Nasci a 11 do três de 1969.” Vitorino, como se identifica, parece confuso. “Os meus pais? Não conheço. Fomos abandonados.” Ele e cinco irmãos, diz, foram criados “num lar na Estefânia”, em Lisboa. “Tive de me vir embora de lá quando cresci”, conta, referindo que foi viver para a Portela de Sintra, onde construiu uma barraca. “Mas tive de me vir embora. Roubavam-me todos os dias, todas as coisas”. E alguém lhe disse que havia uma mata em Rio de Mouro: um terreno privado – “baldio quando vim para cá” – onde ele poderia construir outra barraca. Foi há 18 anos. Vitorino juntou madeiras para fazer paredes e telhas para um telhado e construiu a barraca – sem as mínimas condições de habitabilidade mas muito limpa. Há pouco tempo recebeu a visita da Câmara de Sintra que, diz, prometeu realojá-lo.

Sofia Rêgo





<< Home